É uma tarde fria, e tudo o que eu vejo ao meu redor é poeira. Uma massa cinza que parece viva, mas que me remete à mais desoladora sensação de morte. A promessa era a de um dia ensolarado.
É estranho, eles costumam nos alertar com valiosa antecedência sobre estes episódios de fúria titânica. Já posso ouvir as críticas que os sacerdotes vão ouvir. Haverá muito socar de mesas, vociferações e defesas de humildade protocolar, nos costumeiros simulacros de grandeza. E no final não haverá nada.
Eu fui contemporâneo de pelo menos quinze acontecimentos desta magnitude. Mas nunca assim, de surpresa. Eu sempre tive a oportunidade de me abrigar desta fúria colossal. Algum representante dos sacerdotes sempre aparecia para anunciar os ataques divinos. Não ousamos pedir explicações, mas, por uma questão de auto-preservação, sempre nos consideramos no direito de recebermos a bênção do aviso.
É um vento frio que espalha estas nuvens cinzentas. Eu olho para cima e imagino a amplitude esmagadora do céu. Eu nunca vi um deus. Com certeza já o ouvi e senti sua força, mas nunca vi. Enquanto a poeira se dissipa e minha visão fica mais clara, posso constatar a imensidão da destruição. A compactação dos escombros denuncia um estilo de devastação que apenas faz jus a uma divindade feminina. Eu já vi umas seis vezes. O descontrole, o caos, a impulsividade. Sinto o tremor, a síndrome do verme que está a mercê do deus que lhe poupa a vida apenas para que o medo possa durar mais um pouco.
Todos aprendem que, quando o medo vai embora, a divindade não precisa mais de você. Ninguém está preparado para ser descartado, e é por isto que temos tanto medo de perder o medo do mundo. Li sobre isto ontem mesmo, num livro escrito por Zardo Rejes, da filosofia cilistênica. Eu não acho que ele seja o picareta que tanto dizem. É apenas um cínico, um palhaço que ninguém entende. E um viciado.
Não diria nada disto se não o conhecesse tão bem. Tornamo-nos amigos ou algo parecido por intermédio de Luli, sua irmã mais nova. Ela foi a mulher que fez com que eu sentisse vontade de cometer suicídio diversas vezes. Mas nada disto importa agora. Minha atenção sempre se volta a estas coisas pequenas quando estou diante de eventos trancendentais e assustadores como este. Deve ser o reflexo de minha covardia diante da tarefa de compreender estes fatos.
Mas por mais que eu tente fazer a reconstrução mental do que aconteceu hoje, não consigo casar as peças. Estava viajando de carro, tangenciando esta cidade quando tudo começou. É tão difícil de descrever quanto os acidentes de trânsito em que você participa. Foi um sacudir de ondas sonoras e a privação de qualquer referencial, fiquei completamente desorientado. Um alvoroço se apoderou de mim e eu me lembro de me mover de modo frenético, sem pensar muito no que estava fazendo. Empurrei a porta e quando dei por mim, estava engatinhando para fora do carro, cujas rodas apontavam para o céu. O atrito com o asfalto passou despercebido, já que toda minha sensibilidade estava tomada pela forte ventania que me golpeava o rosto e me fechava os olhos.
Lá estava eu, metade do corpo para fora do carro, as pernas se contorcendo de pavor ao ponto de causar câimbra. O forte vento quase chegava a deformar tudo o que tocava. Além do turbulento assopro, pude ouvir sons massivos, uniformes, sons de destruição. Os sons dos socos de um deus. Protegi os olhos com a mão, para que pudesse abri-los e saber o que temer. Vi apenas poeira e clarões. Este era o cenário, a poeira saía da cidade e me envolvia, tornando-me parte da arena de devastação. Não pude saber de onde vinham os ataques, não consegui enxergar coisa alguma, apenas os clarões coloridos, filtrados pela espessa nuvem cinzenta.
Levantei-me e caminhei sem saber que rumava para a cidade. Os sons ficavam mais altos e agora conseguia discernir alguns gritos. Gritos de vítimas e gritos inumanos, coléricos que soavam feitos forças da natureza, como cachoeiras descomunais.
E esta nuvem que mais parece um túmulo para esta cidade infeliz? Foi a dúvida que me ocorreu em meio ao terror. Seria o pó dos destroços ou o vapor das ventas de um deus cheio de ira? Continuei me movendo, agora deixando que minha agitação se traduzisse em passos mais acelerados. Corri cada vez menos desorientado até o momento em que pude associar os deslocamentos de ar aos estrondos. Parei e olhei na direção de onde partiam aquelas ondas de aniquilação. A poeira foi se dissipando em meio a uma calmaria bastante suspeita e o caos se travestiu em harmonia. Até mesmo o sol veio me consolar, mas de imediato, repeli este falso mundo de tranquilidade na certeza de que nada mais seria como antes. De algum modo eu sabia que havia sido naquele momento, em que estive rodeado por opressão e morte, que finalmente tive contato com a face real deste mundo.
Continua...
É estranho, eles costumam nos alertar com valiosa antecedência sobre estes episódios de fúria titânica. Já posso ouvir as críticas que os sacerdotes vão ouvir. Haverá muito socar de mesas, vociferações e defesas de humildade protocolar, nos costumeiros simulacros de grandeza. E no final não haverá nada.
Eu fui contemporâneo de pelo menos quinze acontecimentos desta magnitude. Mas nunca assim, de surpresa. Eu sempre tive a oportunidade de me abrigar desta fúria colossal. Algum representante dos sacerdotes sempre aparecia para anunciar os ataques divinos. Não ousamos pedir explicações, mas, por uma questão de auto-preservação, sempre nos consideramos no direito de recebermos a bênção do aviso.
É um vento frio que espalha estas nuvens cinzentas. Eu olho para cima e imagino a amplitude esmagadora do céu. Eu nunca vi um deus. Com certeza já o ouvi e senti sua força, mas nunca vi. Enquanto a poeira se dissipa e minha visão fica mais clara, posso constatar a imensidão da destruição. A compactação dos escombros denuncia um estilo de devastação que apenas faz jus a uma divindade feminina. Eu já vi umas seis vezes. O descontrole, o caos, a impulsividade. Sinto o tremor, a síndrome do verme que está a mercê do deus que lhe poupa a vida apenas para que o medo possa durar mais um pouco.
Todos aprendem que, quando o medo vai embora, a divindade não precisa mais de você. Ninguém está preparado para ser descartado, e é por isto que temos tanto medo de perder o medo do mundo. Li sobre isto ontem mesmo, num livro escrito por Zardo Rejes, da filosofia cilistênica. Eu não acho que ele seja o picareta que tanto dizem. É apenas um cínico, um palhaço que ninguém entende. E um viciado.
Não diria nada disto se não o conhecesse tão bem. Tornamo-nos amigos ou algo parecido por intermédio de Luli, sua irmã mais nova. Ela foi a mulher que fez com que eu sentisse vontade de cometer suicídio diversas vezes. Mas nada disto importa agora. Minha atenção sempre se volta a estas coisas pequenas quando estou diante de eventos trancendentais e assustadores como este. Deve ser o reflexo de minha covardia diante da tarefa de compreender estes fatos.
Mas por mais que eu tente fazer a reconstrução mental do que aconteceu hoje, não consigo casar as peças. Estava viajando de carro, tangenciando esta cidade quando tudo começou. É tão difícil de descrever quanto os acidentes de trânsito em que você participa. Foi um sacudir de ondas sonoras e a privação de qualquer referencial, fiquei completamente desorientado. Um alvoroço se apoderou de mim e eu me lembro de me mover de modo frenético, sem pensar muito no que estava fazendo. Empurrei a porta e quando dei por mim, estava engatinhando para fora do carro, cujas rodas apontavam para o céu. O atrito com o asfalto passou despercebido, já que toda minha sensibilidade estava tomada pela forte ventania que me golpeava o rosto e me fechava os olhos.
Lá estava eu, metade do corpo para fora do carro, as pernas se contorcendo de pavor ao ponto de causar câimbra. O forte vento quase chegava a deformar tudo o que tocava. Além do turbulento assopro, pude ouvir sons massivos, uniformes, sons de destruição. Os sons dos socos de um deus. Protegi os olhos com a mão, para que pudesse abri-los e saber o que temer. Vi apenas poeira e clarões. Este era o cenário, a poeira saía da cidade e me envolvia, tornando-me parte da arena de devastação. Não pude saber de onde vinham os ataques, não consegui enxergar coisa alguma, apenas os clarões coloridos, filtrados pela espessa nuvem cinzenta.
Levantei-me e caminhei sem saber que rumava para a cidade. Os sons ficavam mais altos e agora conseguia discernir alguns gritos. Gritos de vítimas e gritos inumanos, coléricos que soavam feitos forças da natureza, como cachoeiras descomunais.
E esta nuvem que mais parece um túmulo para esta cidade infeliz? Foi a dúvida que me ocorreu em meio ao terror. Seria o pó dos destroços ou o vapor das ventas de um deus cheio de ira? Continuei me movendo, agora deixando que minha agitação se traduzisse em passos mais acelerados. Corri cada vez menos desorientado até o momento em que pude associar os deslocamentos de ar aos estrondos. Parei e olhei na direção de onde partiam aquelas ondas de aniquilação. A poeira foi se dissipando em meio a uma calmaria bastante suspeita e o caos se travestiu em harmonia. Até mesmo o sol veio me consolar, mas de imediato, repeli este falso mundo de tranquilidade na certeza de que nada mais seria como antes. De algum modo eu sabia que havia sido naquele momento, em que estive rodeado por opressão e morte, que finalmente tive contato com a face real deste mundo.
Continua...
Comment